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Abril despedaçado e a auto tutela

Abril despedaçado, com direção de Walter Salles, tem como cenário o sertão brasileiro no início do século XX, em 1910. Momento histórico peculiar ao país, a narrativa desenvolve-se a partir da rivalidade entre duas famílias, cujo relacionamento beligerante é representado simbolicamente por uma camisa manchada de sangue. Este elemento se manifesta como conteúdo marco ao exercício da vingança privada, funcionando como uma espécie de balizamento ético visto que os inimigos, hasteando em seus respectivos varais uma camisa com mancha do líquido vital, aguardam-na amarelar, pois este é o sinal de que um membro da família adversária deverá morrer como forma de reparação à morte de um de seus entes.
Destaque-se que o ambiente sertanejo sempre foi marcado pela desigualdade decorrente do fosso social característico da região, expressa vigorosamente na Velha República, a qual suplantou o regime monárquico. Ressalte-se que o modelo republicano inscrito na Carta Constitucional de 1891 não traduzia materialmente as mudanças sociais tão necessárias aos sertanejos.
Vingança e fraternalismo são elementos que compõem o ambiente patriarcal, numa atmosfera reveladora de que o cenário árido a abrigar animosidades profundas reserva espaço ao igualmente visceral afeto familiar. Este caldo de vicissitudes a imantar os indivíduos desdobra-se em costumes que se inscrevem na tessitura das relações como referenciais normativos acima de qualquer previsão legal institucionalmente estabelecida, razão por que prevalece a palavra como selo de compromisso, ainda que contrário à norma legal.
O espírito trágico a definir sua estrutura narrativa acentua sua beleza e poética, realçando o apolíneo e o dionisíaco que habitam a alma humana, conforme nos indicaria Nietzsche. As dores, a obstinação da vingança e aridez dos cenários são elementos a demonstrar quão forte é o sertanejo (aliás, ‘antes de tudo!’), o que, no presente caso, tal vigor manifesta-se, dentre outros, na submissão ao pátrio poder, bem como na coragem de romper com tradições que se naturalizam pela aceitação absoluta, condição a marcar a trajetória existencial de Tonho (Rodrigo Santoro) e Pacu (Ravi Ramos Lacerda), protagonistas da trama, uma vez que ao primeiro cumpre realizar a ruptura com um dogma familiar que dilui e violenta sua individualidade, experiência possível pela entrega incondicional ao amor por uma doce e linda moça, cujo estímulo advém do eu onírico que define a alma de seu pequeno irmão, o qual liberta-se das amarras da violência simbólica pelo modo angelical e sonhador de enxergar a existência.
Tal contexto nos propõe, além de uma rica discussão em torno dos componentes histórico-político-sócio-antropológicos a matizar essa bela produção, uma reflexão sobre a prevalência da autotutela, meio de composição de conflitos através da vingança privada nas relações sociais.
É consabido que a autotutela prevaleceu na antiguidade como expressão de justiça, meio superior à reparação da ofensa cometida em face de alguém, condição institucionalmente afirmada pelas civilizações ao longo de séculos. Cumpre destacar que tal modelo perpetuou-se, sendo sistematicamente praticado pelas nações no medievo, o qual, sob o matiz de um processo penal arraigado em princípios que se mostrariam colidentes com a dignidade humana, cedera lugar à ideia a um processo penal devido como corolário de justiça.
O abandono da vingança privada afirma-se sob a influência do pensamento iluminista, especialmente com Cesare Beccaria em sua obra Dos delitos e das penas, o qual influenciou sucessivas gerações no trato e estabelecimento de um modelo mais humanitário no âmbito das sanções penais. Este olhar contrapõe-se ao cultivo da herança hamurabiana de reparação, o qual tornou-se referência para o direito universal.
A marcha do Direito realizou-se sob as pegadas de modelos de punição oriundos de opção da política criminal dos legisladores, os quais, especialmente no continente europeu operaram sob critérios praticamente uniformes.
Merece destaque o fato de que, não mais atuando o indivíduo como parte legítima a realizar a vingança, porquanto o Estado, suplantando tal paradigma, passara a ostentar o encargo punitivo, a retribuição do mal cometido em sua exata medida revestiu-se de contornos curiosos, tal como na França, conforme narrado por Michael Foucalt, em seu livro Vigiar e punir, em que à prática do homicídio destinava-se a morte do delinquente precedida de um vitupério público. O trajeto percorrido pelo criminoso ao encontro de seu algoz correspondia a uma via crucis, na qual, sob o olhar e suposta cobertura espiritual de um sacerdote católico, o indivíduo expiava seu pecado sob o escárnio do povo que se regozijava com o espetáculo do suplício, o qual culminava com o esquartejamento do condenado.
Acerca do filme referência dessa análise, observa-se que os contrastes que o distanciariam do contexto supra apontado expressam interessante relação entre os mesmos, pois, embora o relato de Foucalt situe o Estado como ente legitimado à aplicação da pena, repousa sobre o fato uma atuação estatal eivada de um sentido sacro, característica presente na experiência existencial do personagem de Santoro, visto que sua conduta fundamenta-se em seu dever de obediência a uma tradição carregada de aspecto semelhantemente místico, convicção expressa por seu pai. 
O pomo de distinção reside no fato de que, ao contrário da obra do filósofo francês, o Estado inexiste à realidade daqueles homens, cuja autoridade paterna constitui-se em ente coator para que Tonho assuma sua missão, qual seja matar uma pessoa do clã oponente, escolha que implica perpetuar uma herança sangrenta entre duas famílias. Relativizado pelas angústias, Tonho leva a cabo sua “obrigação”, restando agora tentar salvar a própria vida, não exatamente pelo instinto de auto preservação, mas, sobretudo, em função da esperança em alcançar a felicidade pelo amor nessa terra.
A despeito das implicações decorrentes dessa ruptura, o sertanejo submete-se às expectativas do pai e mata um homem, atingindo aquele bem cuja ciência jurídica nomeia como o mais relevante: a vida. Tal ato, sob o perfil narrativo proposto, nos informa que os códigos de conduta humanos podem sobrepor-se à norma legal, cuja prática da autotutela (vingança privada) fará parte de um ciclo em que os atores envolvidos a perpetuarão não apenas pela profunda convicção moral, mas, também, em razão da ausência do Estado como substituto legítimo à aplicação da sanção penal.
Em consonância com as considerações acima, saliente-se que o estado Democrático de Direito proposto formalmente pela constituição que deveria reger o país, não passaria senão de uma folha de papel, uma vez que aqueles seres humanos não eram além de uma massa humana invisível, quase etéria, alijados de qualquer posição jurídica, tendo em vista a previsão constitucional apenas contemplá-los formalmente.
Infere-se, portanto, que a ausência estatal, no âmbito da órbita criminal, sobretudo em contextos como o representado em Abril despedaçado, no qual a tessitura das relações sociais se realiza sob princípios concebidos pela tradição, constitui causa para o desenvolvimento de uma cultura baseada na autotutela, a qual permanecerá a tingir de sangue mais camisas em Abril ou qualquer outro mês do calendário sertanejo.

Maurício Alves

Advogado

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